A ROUPA NOVA DO REI
de Hans Christian Andersen
Resumo/Abstract
Era uma vez um rei que gastava todo o seu dinheiro em roupa.
Um dia apresentaram-se diante dele dois impostores que se faziam passar por alfaiates.
Diziam que não só conseguiam fazer trajes muito bonitos, com cores e padrões maravilhosos, como também eram capazes de dotá-los de uma qualidade extraordinária: ficavam invisiveis diante de qualquer pessoa que não fosse qualificada para o cargo que ocupava ...
"(...) O jogo do SER e do PARECER, assim como a velha e obsoleta máxima "Dividir para conquistar" estão presentes neste conto pleno de significados e valores tão presentes e atuais nos tempos que correm ...
Desde o povo até a máxima expressão da soberania (Rei), todos são enganados por causa do excesso de vaidade. A vaidade cega o Rei e todos que dele dependiam seja politicamente ou funcionalmente. Tal cegueira alastra-se, quase inconscientemente, pelo reino. Todos são manipulados a enxergarem o que não existe, porque são sujeitos que acreditam serem superiores e como tal, abençoados com competência, prestígio, reconhecimento, elogios e bajulações.
O elemento surpresa da narrativa é a criança, a única que não se deixa manipular, pois é livre de vaidades. A criança é o sujeito que desvenda a farsa, que desmascara o teatro onde todos são passíveis de serem enganados. Ela opera a grande transformação na história e a partir de sua ação, as coisas voltam a normalidade, mas com outros valores diferentes do início.
O Rei, afetado pela paixão da vergonha é desonrado e inferiorizado, humilhado por enxergar às claras que foi tolo, imbecil, incompetente e inapto para o cargo que ocupava. Logo ele: o mais poderoso do reino!" O próprio sujeito apaixonado tem como única saída a aceitação de sua condição inferiorizada e do seu "EU Real falhado", isto é, ele deixa de ser o modelo social perante os seus súbditos, para assumir uma posição mais próxima do povo, assume-se então humilde, passível de errar e falhar, como qualquer comum mortal. Como tal, mais humano. O sujeito envergonhado torna-se consciente de sua limitação diante dos outros e transforma-se por meio de um dever-ser e de um dever-fazer diferentes. Um novo cenário de si é edificado: o rei passa a ser humilde e modesto.(...)
Pois, seja num reino de contos de fadas ou na vida real, não basta mais do que um único dedo que aponte para qualquer castelo de cartas sustentado sobre as fundações da mentira e do engano, para que este comece a ruir.
"Era uma vez ...
um rei, tão exageradamente amigo de roupas novas, que nelas gastava todo o seu dinheiro. Ele não se
preocupava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pela floresta, a não ser para exibir roupas novas. Para cada hora do dia, tinha uma roupa diferente. Em vez de o povo dizer, como de costume, com relação a outro rei: "Ele está em seu gabinete de trabalho", dizia "Ele está no seu quarto de vestir".
A vida era muito divertida na cidade onde ele vivia. Um dia, chegaram hóspedes estrangeiros ao palácio. Entre eles havia dois trapaceiros. Apresentaram-se como tecelões e gabavam-se de fabricar os mais lindos tecidos do mundo. Não só os padrões e as cores eram fora do comum, como, também as fazendas tinham a especialidade de parecer invisíveis às
pessoas destituídas de inteligência, ou àquelas que não estavam aptas para os cargos que ocupavam.
"Essas fazendas devem ser esplêndidas, pensou o rei. Usando-as poderei descobrir quais os homens, no meu reino, que
não estão em condições de ocupar seus postos, e poderei substituí-los pelos mais capazes... Ordenarei, então, que
fabriquem certa quantidade deste tecido para mim."
Pagou aos dois tecelões uma grande quantia, adiantadamente, para que logo começassem a trabalhar. Eles trouxeram dois teares nos quais fingiram tecer, mas nada havia em suas lançadeiras. Exigiram que lhes fosse dada uma porção da mais cara linha de seda e ouro, que puseram imediatamente em suas bolsas, enquanto fingiam trabalhar nos teares vazios.
- Eu gostaria de saber como vai indo o trabalho dos tecelões, pensou o rei. Entretanto, sentiu-se um pouco embaraçado ao pensar que quem fosse estúpido, ou não tivesse capacidade para ocupar seu posto, não seria capaz de ver o tecido. Ele não tinha propriamente dúvidas a seu respeito, mas achou melhor mandar alguém primeiro, para ver o andamento do trabalho.
Todos na cidade conheciam o maravilhoso poder do tecido e cada qual estava mais ansioso para saber quão estúpido era o seu vizinho.
- Mandarei meu velho ministro observar o trabalho dos tecelões. Ele, melhor do que ninguém, poderá ver o tecido, pois é um homem inteligente e que desempenha suas funções com o máximo da perfeição, resolveu o rei.
Assim sendo, mandou o velho ministro ao quarto onde os dois embusteiros simulavam trabalhar nos teares vazios.
- "Deus nos acuda!!!" pensou o velho ministro, abrindo bem os olhos. "Não consigo ver nada!"
Não obstante, teve o cuidado de não declarar isso em voz alta. Os tecelões o convidaram para aproximar-se a fim de
verificar se o tecido estava ficando bonito e apontavam para os teares. O pobre homem fixou a vista o mais que pode, mas não conseguiu ver coisa alguma.
- "Céus!, pensou ele. Será possível que eu seja um tolo? Se é assim, ninguém deverá sabê-lo e não direi a quem quer que seja que não vi o tecido."
- O senhor nada disse sobre a fazenda, queixou-se um dos tecelões.
- Oh, é muito bonita. É encantadora!! Respondeu o ministro, olhando através de seus óculos. O padrão é lindo e as cores estão muito bem combinadas. Direi ao rei que me agradou muito.
- Estamos encantados com a sua opinião, responderam os dois ao mesmo tempo e descreveram as cores e o padrão
especial da fazenda. O velho ministro prestou muita atenção a tudo o que diziam, para poder reproduzi-lo diante do rei.
Os embusteiros pediram mais dinheiro, mais seda e ouro para prosseguir o trabalho. Puseram tudo em suas bolsas. Nem um fiapo foi posto nos teares, e continuaram fingindo que teciam. Algum tempo depois, o rei enviou outro fiel oficial para olhar o andamento do trabalho e saber se ficaria pronto em breve. A mesma coisa lhe aconteceu: olhou, tornou a olhar, mas só via os teares vazios.
- Não é lindo o tecido? Indagaram os tecelões, e deram-lhe as mais variadas explicações sobre o padrão e as cores.
"Eu penso que não sou um tolo, refletiu o homem. Se assim fosse, eu não estaria à altura do cargo que ocupo. Que coisa
estranha!!"... Pôs-se então a elogiar as cores e o desenho do tecido e, depois, disse ao rei: "É uma verdadeira maravilha!!"
Todos na cidade não falavam noutra coisa senão nessa esplendida fazenda, de modo que o rei, muito curioso, resolveu vêla, enquanto ainda estava nos teares. Acompanhado por um grupo de cortesões, entre os quais se achavam os dois que já
tinham ido ver o imaginário tecido, foi ele visitar os dois astuciosos impostores. Eles estavam trabalhando mais do que
nunca, nos teares vazios.
- É magnífico! Disseram os dois altos funcionários do rei. Veja Majestade, que delicadeza de desenho! Que combinação de cores! Apontavam para os teares vazios com receio de que os outros não estivessem vendo o tecido.
O rei, que nada via, horrorizado pensou: "Serei eu um tolo e não estarei em condições de ser rei? Nada pior do que isso poderia acontecer-me!" Então, bem alto, declarou:
- Que beleza! Realmente merece minha aprovação!! Por nada neste mundo ele confessaria que não tinha visto coisa
nenhuma. Todos aqueles que o acompanhavam também não conseguiram ver a fazenda, mas exclamaram a uma só voz:
- Deslumbrante!! Magnífico!!
Aconselharam eles ao rei que usasse a nova roupa, feita daquele tecido, por ocasião de um desfile, que se ia realizar daí a alguns dias. O rei concedeu a cada um dos tecelões uma condecoração de cavaleiro, para seu usada na lapela, com o título "cavaleiro tecelão". Na noite que precedeu o desfile, os embusteiros fiizeram serão. Queimaram dezesseis velas para que todos vissem o quanto estavam trabalhando, para aprontar a roupa. Fingiram tirar o tecido dos teares, cortaram a roupa no ar, com um par de tesouras enormes e coseram-na com agulhas sem linha. Afinal, disseram:
- Agora, a roupa do rei está pronta.
Sua Majestade, acompanhado dos cortesões, veio vestir a nova roupa. Os tecelões fingiam segurar alguma coisa e diziam:
"aqui está a calça, aqui está o casaco, e aqui o manto. Estão leves como uma teia de aranha. Pode parecer a alguém que
não há nada cobrindo a pessoa, mas aí é que está a beleza da fazenda".
- Sim! Concordaram todos, embora nada estivessem vendo.
- Poderia Vossa Majestade tirar a roupa? propuseram os embusteiros. Assim poderiamos vestir-lhe a nova, aqui, em frente ao espelho. O rei fez-lhes a vontade e eles fingiram vestir-lhe peça por peça. Sua majestade virava-se para lá e para cá, olhando-se no espelho e vendo sempre a mesma imagem, de seu corpo nu.
- Como lhe assentou bem o novo traje! Que lindas cores! Que bonito desenho! Diziam todos com medo de perderem seus postos se admitissem que não viam nada. O mestre de cerimônias anunciou:
- A carruagem está esperando à porta, para conduzir Sua Majestade, durante o desfile.
- Estou quase pronto, respondeu ele.
Mais uma vez, virou-se em frente ao espelho, numa atitude de quem está mesmo apreciando alguma coisa.
Os camareiros que iam segurar a cauda, inclinaram-se, como se fossem levantá-la do chão e foram caminhando, com as mãos no ar, sem dar a perceber que não estavam vendo roupa alguma. O rei caminhou à frente da carruagem, durante o desfile. O povo, nas calçadas e nas janelas, não querendo passar por tolo, exclamava:
- Que linda é a nova roupa do rei! Que belo manto! Que perfeição de tecido!
Nenhuma roupa do rei obtivera antes tamanho sucesso!
Porém, uma criança que estava entre a multidão, em sua imensa inocência, achou aquilo tudo muito estranho e gritou:
- Coitado!!! Ele está completamente nu!! O rei está nu!!
O povo, então, enchendo-se de coragem, começou a gritar:
- Ele está nu! Ele está nu!
O rei, ao ouvir esses comentários, ficou furioso por estar representando um papel tão ridículo! O desfile, entretanto, devia prosseguir, de modo que se manteve imperturbável e os camareiros continuaram a segurar-lhe a cauda invisível. Depois que tudo terminou, ele voltou ao palácio, de onde envergonhado, nunca mais pretendia sair. Somente depois de muito
tempo, com o carinho e afeto demonstrado por seus cortesões e por todo o povo, também envergonhados por se deixarem enganar pelos falsos tecelões, e que clamavam pela volta do rei, é que ele resolveu se mostrar em breve aparições... Mas nunca mais se deixou levar pela vaidade e perdeu para sempre a mania de trocar de roupas a todo momento.
Quanto aos dois supostos tecelões, desapareceram misteriosamente, levando o dinheiro e os fios de seda e ouro. Mas,
depois de algum tempo, chegou a notícia na corte, de que eles haviam tentando fazer o mesmo golpe em outro reino e
haviam sido desmascarados, e agora cumpriam uma longa pena na prisão.
"O REI VAI NU"
de Hans Christian Andersen
Everest
ISBN: 978 - 989 - 50 - 0452 - 2
2ª EDIÇÃO
1999
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